A cultura pop do século 21 está mudando nosso cérebro - para melhor. E está formando de médicos mais habilidosos a gente mais sociável. Entenda como os games, a Internet e até a televisão aprimoram sua mente
Imagine que desse para você escolher entre dois médicos para uma cirurgia. O primeiro é um homem tranqüilo, que gosta de livros e de fazer esportes nas horas vagas. O outro é um jovem com mais horas de videogame que de UTI. Qual você chamaria para abrir o seu corpo?
Talvez a melhor escolha não seja a mais óbvia. Por dois meses em 2002, 33 cirurgiões do Centro Médico Beth Israel, em Nova York, jogaram videogame nos intervalos das laparoscopias – cirurgias de abdômen em que um cabo de fibra ótica entra pelo umbigo e é operado remotamente com um mouse. Os 9 médicos que já tinham o hábito de jogar videogame ao menos 3 horas por dia eram 27% mais rápidos e cometiam 37% menos erros do que os colegas menos nerds. Um grupo que não estava acostumado aos joysticks começou a praticar os games Super Monkey Ball 2, Silent Scope e Star Wars: Racer Revenge (jogos que pedem doses cavalares de concentração e agilidade). Resultado: a rapidez com que operam seus equipamentos melhorou em 37%. Alguma coisa aconteceu com o cérebro desses médicos: ficar poucas horas jogando aumentou a habilidade deles. Exemplos assim se repetem. Há dois anos, a neurocientista Daphne Bavelier, da Universidade de Rochester, fez testes em 3 grupos de universitários. Um deles jogou o game de estratégia Medal of Honor por 10 dias, o segundo brincou com algo bem mais simples, Tetris, e um terceiro não fez nada. Todos foram submetidos a testes de agilidade motora e percepção visual e espacial. A turma do Medal of Honor se saiu melhor.
E não estamos falando só de games. Tudo indica que a própria cultura pop de hoje está mudando a nossa mente. Há indícios de que assistir a seriados com tramas complexas, como 24 Horas e Lost, desenvolve noções de inteligência social, e de que passar horas na internet aumenta a capacidade de se relacionar – inclusive fora do mundo virtual. “Uma das razões para a espécie humana ser tão bem-sucedida é a adaptabilidade do nosso cérebro. Todas as ferramentas que usamos, do fogo aos microscópios, influenciam as conexões entre os neurônios. Mas nunca existiram tantos estímulos, para tantas pessoas”, diz o químico britânico Martin Westwell, do Instituto pelo Futuro da Mente, da Universidade de Oxford. Vamos entender melhor como esse turbilhão de novos estímulos mexe com a nossa cabeça. Para começar, precisamos responder uma pergunta: o que é que os videogames têm de tão especial?
Do XBox para o laboratório
A resposta: sofrimento. Boa parte dos games atuais oferecem horas de angústia e só uns pequenos momentos de recompensa. Geralmente as regras não estão escritas em lugar nenhum; você as descobre à medida que joga. Nem o roteiro é fixo; você pode se movimentar do jeito que bem entender – mas corre o risco de chegar a uma nova fase e descobrir que esqueceu de cumprir alguma tarefa importante lá atrás.
Veja o exemplo de Zelda: The Wind Walker. O objetivo ali é salvar a irmã do personagem. Para isso, é preciso derrotar o vilão Ganon. Mas antes você tem que arranjar um arsenal. Achar as armas não é fácil: você deve encontrar a “pérola de Din” para ganhar esse direito. Mas não sem antes atravessar um oceano em busca da tal pérola. E para atravessar o oceano é preciso arranjar um barco... Ufa.
Ah, claro: cada um desses estágios se divide em outros menores. E em nenhum deles existem setas apontando o caminho. Você deve encontrar o rumo por conta própria e cada etapa fica mais complexa. “Muito mais do que livros, filmes ou músicas, games fazem você tomar decisões. Romances podem ativar a imaginação, canções podem provocar emoções fortes, mas jogos forçam você a priorizar, a escolher”, argumenta Steve Johnson em seu livro A Televisão e o Videogame nos Tornam Mais Inteligentes. Essas escolhas são feitas pelo método de tentativa e erro, seguido de análise e reconhecimento de relações de causa e efeito. É exatamente o que um cientista faz.
Pense num jogo como a série Metal Gear: um soldado se infiltra numa fortificação para descobrir que tipo de armamento de destruição em massa estão construindo ali. Lá dentro, o soldado precisa contactar os membros da resistência local, descobrir rotas e identificar adversários. E ainda acumular armamentos, para só então desafiar o tirano local e acabar com seus planos. “Os games mais desafiadores ensinam a agir como cientista: forçam os jogadores a pensar em hipóteses, testá-las, refletir sobre as conseqüências, refiná-las e testá-las novamente até alcançar resultados melhores”, diz o filósofo americano James Paul Gee, da Universidade de Wisconsin e autor de What Video Games Have to Teach Us About Learning and Literacy (“O Que os Videogames Podem nos Ensinar sobre Aprendizado e Cultura”, inédito em português). “Ao fim desse ciclo, o jovem deixa de ser apenas consumidor de conhecimento. Ele se torna produtor, a ponto de alguns jogos, como The Elder Scrolls III, terem um final diferente para cada jogador.”
Há quem diga, aliás, que esse tipo de experiência é mais útil para a vida do que os livros. “O mecanismo de recompensa dos games ajuda a encontrar ordem e significado no mundo”, diz o pedagogo americano Kurt Squire, também da Universidade de Wisconsin.Outros pesquisadores vão mais longe até. Para eles, nem é preciso todo esse mecanismo dos games para melhorar nosso cérebro. Basta se enterrar no sofá com o controle remoto na mão. Quer saber como? Então não mude de canal.
A TV não nos deixa burros
A 1a temporada de Starsky & Hutch foi ao ar em 1975. A estrutura narrativa dessa série era simples e nunca mudava: nos primeiros minutos, os dois protagonistas, policiais, se vêem diante de uma situação dramática provocada por criminosos. Depois de 60 minutos, o problema está resolvido e tudo volta ao normal. E assim foi durante 4 temporadas. Agora compare Starsky & Hutch com 24 Horas, o seriado policial que estreou em 2001. Cada uma das 6 temporadas acompanha, em tempo real, um dia do agente Jack Bauer. Na temporada de estréia, havia 4 núcleos sociais diferentes: as famílias de Bauer, do senador David Palmer e do terrorista Victor Drazen mais o grupo de funcionários da Unidade Contraterrorismo. Cada história só se resolve depois de uma temporada inteira, o que dá 24 horas de ação. Há 25 personagens importantes orbitando o protagonista. Para complicar, algumas dessas pessoas não são o que parecem. As regras de relacionamento entre elas mudam, assim como algumas se tornam o centro da atenção por algum tempo, para só reaparecer depois.
O espectador precisa torrar o cérebro para ir montando o quebra-cabeça da trama. É parte da diversão. E não apenas em 24 Horas, mas em boa parte dos seriados líderes de audiência nos últimos anos, de Lost a Família Soprano, de Simpsons a Desperate Housewives. E também se aplicam a reality shows no estilo dos Big Brothers. “Esses programas não são tão passivos quanto parecem. Acompanhá-los é uma excelente forma de desenvolver a inteligência social, a capacidade de monitorar e identificar diferentes formas de interação nas pessoas à nossa volta”, argumenta o cientista cognitivo americano Shawn Green, da Universidade de Rochester.
Não há dúvida de que nosso cérebro é capaz de melhorar o desempenho social. Em 2000, uma pesquisa do Instituto de Neurologia da Universidade College London identificou que motoristas de táxi têm, em média, áreas maiores do hipocampo dedicadas a identificar redes de relações sociais a partir do aspecto físico das pessoas, já que eles passam o dia lidando com passageiros diferentes. E motoristas veteranos têm essa área do cérebro ainda mais desenvolvida que os novatos – sinal de que o hipocampo cresceu à medida que foi mais usado. Algo parecido pode acontecer quando uma pessoa assiste a programas atuais da TV? “Não existem pesquisas conclusivas porque o fenômeno é muito recente. Mas é possível, sim”, diz Shawn Green. Se for isso mesmo, podemos estar diante de algo realmente inusitado: assim como os taxistas experientes percebem mais rápido quem é o passageiro gente boa, um telemaníano fã de Jack Bauer teria mais chances de perceber no trabalho a diferença entre um colega honesto e um que, apesar de se fazer de simpático, não vê a hora de roubar seu cargo.
Da tela para a rua
Se a TV desenvolve a inteligência emocional, a internet é o lugar onde essas habilidades podem entrar em prática. “Enquanto a TV estimula o individualismo, a internet faz o contrário, inclusive para quem tem dificuldade em se relacionar com os outros pessoalmente, olho no olho”, diz o psicólogo americano John Suler, da Universidade Rider, nos EUA.
Trata-se de um fenômeno de proporções gigantescas: de acordo com o site Technorati, que funciona como um índice mundial de blogs, o número de diários virtuais cresceu 100 vezes entre 2002 e 2006. Hoje, a internet é habitada por mais de 70 milhões deles, e a cada dia surgem outros 120 000. Em português, existem hoje 1,4 milhão de blogs, o dobro de três anos atrás. Isso mais o crescimento dos sites de relacionamento, como orkut, MySpace e Facebook, e a onipresença tanto das mensagens instantâneas (MSN, Google Talk) como do velho e-mail levaram pesquisadores a criar uma nova área de estudos, a neurociência social.
Alguns cientistas dessa área acreditam que o uso dos computadores para se relacionar inibe o funcionamento do córtex orbitofrontal, uma pequena área do cérebro, bem atrás dos olhos, responsável pelo controle dos impulsos e por parte do comportamento social. É graças a essa região que avaliamos, a cada segundo, como os outros reagem às nossas atitudes, e a partir dessa interpretação planejamos o próximo passo.
Ou seja, ele funciona como um filtro para o nosso comportamento: não nos deixa fazer coisas socialmente reprováveis. Só que os mais tímidos, que acham que qualquer atitude deles será reprovada, acabam sofrendo com isso. A rede, então, pode ajudá-los a superar o problema. “A inibição desse filtro é libertadora para muita gente. Serve como uma forma de terapia”, afirma o professor John Suler. Uma terapia que pode melhorar o desempenho social no mundo de carne e osso também, como diz o próprio Suler: “Tenho um paciente de 20 anos com dificuldade de se comunicar. Pedi a ele que entrasse em chats durante uma hora por dia e, depois de 6 meses, ele estava mais autoconfiante e articulado.”
Nem todo mundo concorda. O pesquisador americano Dimitri Williams, da Universidade de Illinois, é um dos que tiraram conclusões diferentes. Seus estudos, ele diz, indicam que o ciberespaço só serve para amplificar nossas tendências naturais: se você é extrovertido, vai ficar mais sociável ainda. Mas acaba mais isolado do que antes se for introspectivo.
A Televisão e o Videogame nos Tornam Mais Inteligentes
Steven Johnson, Campus, 2005.
What Video Games Have to Teach Us
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado por sua participação!